Por Thales Castro Coordenador do Curso de Ciência Política da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
O ponto de partida da presente análise é o eixo de convergência entre dois países continentais complexos e em desenvolvimento, envoltos nas névoas da história político-econômica recente e em meio ao labirinto das assimetrias internacionais. Brasil e China – síntese primaz dos desafios do Oriente e do Ocidente – estão unidos por vínculos diametralmente opostos de um jovem país dos trópicos, produto do expansionismo ultramarino português no humanismo quinhentista do século XV e XVI, com uma forte nação, fonte de cultura civilizatória milenar fascinante de linha coletivista e comunitária.
A provocação inicial que faço é acerca da necessidade do encontro entre dois polos de relevo nas Relações Internacionais: o Brasil carnavalesco e tropical de Macunaíma e a China – o “Império do Meio” como designam seus ideogramas da escrita do país. Assim está posto para nossas reflexões à guisa de destino manifesto às avessas: O Brasil de contraditórios da malemolência do jogo do bicho com a destreza vitoriosa do drible pentacampeão do mundo e a China como dragão do oriente e como nova senhora desta Aldeia Global.
Países de dimensões continentais – Brasil e China – enfrentam convergências, dilemas e perspectivas para um novo ciclo no cenário externo que se forma, deforma e transforma no contexto de divisão de águas da pandemia da COVID-19 (2019-2021). No lapso temporal em questão, temos o nascimento de nova ordem mundial – não mais unipolar centrada nos EUA como “superpotência solitária”, como asseverava Huntington, e sim bipolar. Washington e Beijing ditarão as regras do novo mundo pós-pandemia que emerge de forma certeira, especialmente, com a gradativa cobertura vacinal e um otimismo cauteloso da retomada. A nova hegemonia desloca o centro gravitacional do poder, outrora no eixo euroatlântico, para o coeficiente do extremo asiático. O Brave New World que surge demandará respostas e posicionamentos estratégicos da parte de todos, particularmente, do Brasil que está integrado à China – não somente pelo fato de os chineses serem nossos principais parceiros comerciais desde 2011/2012, mas, sobretudo, pelo fato de estarmos na mesma plataforma dos BRICS, fundada em 2009, integrando África do Sul, Rússia, China, Índia e Brasil.
Um dos principais papeis do cientista político é decifrar os enigmas do poder. Digo mais: dissecar e explicar, ao público em geral, as relações de força-poder-interesse – como costumo dizer com frequência. Neste sentido, nosso papel aqui é trazer à tona as dinâmicas das placas tectônicas do poderio que se aproxima no horizonte. Não podemos nos furtar de compreender as dinâmicas que estão a surgir, pois, as mesmas irão impactar a forma como nos relacionamos internacionalmente, bem como a maneira como articularemos o nosso desenvolvimento e a nossa inserção no concerto das nações. O tempo é agora; o momento é maduro para a ousadia reinventada.
Desde o final de 2020, as diretrizes centrais do Partido Comunista Chinês têm sido de consolidar uma “sociedade moderadamente próspera”, abolindo a miséria absoluta, consolidando sua liderança tecnológica e gerando nova dinâmica de poderio – simbólico e de influência fática – no mundo. Merece, assim, nossa atenção para o 14º. Plano Quinquenal da China, prolatado em outubro de 2020. Por consequência, 2021 será o primeiro ano de implantação gradativa de tal guinada. O atual momento reforça a cooperação internacional sob as mudanças sem precedentes do país no século XXI e ainda sob à égide da pandemia. A iniciativa de Beijing é promover, sob novo contexto global, o desenvolvimento com base nas “circulações duplas”, isto é, o ciclo doméstico sendo principal motor econômico da China e o outro é ciclo externo, que desempenha o papel de auxílio ao ciclo doméstico no desenvolvimento ancorado no consumo e na geração de emprego, renda, tecnologia e transformações inovadoras.
Em termos de manobra geopolítica e geoeconômica, a China de Xi Jinping irá orquestrar seu avanço sustentável, de maneira ousada, utilizando quatro grandes instrumentos de política exterior: o G-20; os BRICS, a APEC e a OCX (Organização para Cooperação de Xangai) – espécie de Tratado de Cooperação Militar Mútua envolvendo Rússia, Índia e países da Ásia Central (Plataforma da Eurásia). Serão, de fato, tempos de muitas transformações e de guinada para a Ásia em termos de centralidade do tempo-espaço de poder do mundo. E que o que tem a haver com o Brasil? Tudo. Vejamos…
Em primeiro lugar, precisamos não perder as muitas janelas de oportunidades que temos diante do novo mundo que se avizinha. É frequente termos um cacoete maldito de derrotismo antecipado que nos recai sob uma “síndrome de vira latas” (Nelson Rodrigues). Abandonemos essas amarras e olhemos para o futuro com força, resiliência e otimismo. Em segundo lugar, pensemos na relação com Beijing como trunfo estratégico que temos, sem prejudicar relações com os EUA do novo presidente Biden. Em terceiro lugar, é necessário reconstruir as pontes dinamitadas pelo caminho recente. Explico. Os dois primeiros anos de mandato Bolsonaro foram de alinhamento visceral e automático com a América conservadora e nacionalista de Trump. Com sua derrota eleitoral para Biden/Harris, o caminho mais seguro para o Planalto foi o do centrismo político-ideológico, tanto na esfera doméstica, quando nas relações exteriores. Está corretíssimo, porém, tal manobra exigirá bastante do corpo profissional dos nossos diplomatas (Itamaraty) em reposicionar e realinhar nossa política externa para seu verdadeiro caráter histórico – o do universalismo pragmático. Desenha-se uma eventual mudança na Pasta das Relações Exteriores (MRE)? Sim. Porém, precisaremos, antes, avaliar e consular como tal manobra repercutirá com o centrão fisiológico (sobretudo após a eleição para a Câmara Federal e o Senado) no contexto das relações com o Governo Federal. Cada ato neste momento será crítico, especialmente, no já melindrado relacionamento com a emergente potência global – a China. Prudência, repensar o cálculo de poder e pragmatismo de retomada serão as palavras de ordem para o Brasil.
Consequentemente, o fato é que o Brasil precisa se reinventar em termos de contornos do seu relacionamento externo com a China, sem prejudicar os demais parceiros históricos do Brasil, incluindo os EUA – primeiro país a reconhecer a independência do país em 1824 (nosso brado às margens do Ipiranga se deu em 1822). Nossa esfinge tropical precisa – antes – fazer sua autoanálise e autocrítica para, na sequência, promover as transformações necessárias diante do tabuleiro de xadrez com o dragão do oriente. Temos uma agenda de convergências amplas – além dos interesses supervenientes que se impõem entre os dois países. É hora de revisitar o passado de uma relação madura que, em 2019, celebrou mais um jubileu. Brasil e China passam a se reconhecer e iniciam suas relações diplomáticas em 1974 ainda na gestão Geisel.
Precisamos, portanto, superar barreiras conjunturais de curto prazo do passado e promover agenda positiva, enquadrando-a no realismo de nossos limites, interesses e possibilidades nacionais. A agenda tecnológica, a cooperação humanitária e de saúde pública em razão da COVID-19 bem como os investimentos que alavancam desenvolvimento e empregos produtivos precisam ser postos em patamar de interesse estratégico de todos – não somente de uma pequena elite burocrática em Brasília. O olhar de longo prazo é o que nos une e que deve selar os destinos de dois grandes países tão diferentes e tão próximos, tal qual a nossa herança do passado que olha, com oportunidades disponíveis, para o futuro.